Entediar é Preciso

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Fábio Ochôa

Na parede às minhas costas se dependuram uns 5 mil livros, quase ameaçando a estrutura da casa e a paciência da minha esposa.

É a minha terceira biblioteca. Já tive outras duas, uma desapareceu pelos costumeiros caprichos de mães, a outra porque doei toda ao me mudar de cidade. Recomecei a vida em Porto Alegre, jurei que já era hora de parar de carregar caixas pesadas de livros a cada mudança e ter que estar sempre comprando mais estantes.

Parte da biblioteca que coube na foto


Eu iria apenas levar os 20, 30 livros que mais gostava e não iria passar disso.

O homem planeja. Deus ri.

Era comum as pessoas perguntarem se “já leu tudo aquilo”. Hoje ninguém mais faz essa pergunta, em parte porque envelhecemos e ao fazer isso passamos a só abrir as portas de casa para quem já conhecemos bem. Sorte minha. Porque isso me poupa da resposta verdadeira: não, não li. Nem perto disso. Compro muito mais do que realmente tenho tempo livre para ler.

Óbvio que nem sempre foi assim.

A resposta mais comum nas outras duas bibliotecas era “sim, claro”. Não por voracidade ou por alguma compulsão intelectual, mas sim por um motivo bem mais banal e ordinário: eu era moleque, desocupado e em bom português castiço, não tinha porra nenhuma para fazer.

Daí eu lia. Acabei pegando o gosto. Era o meu antídoto contra o tédio.

Assim era a vida no século passado.

É comum imaginar que hoje temos mais acesso a cultura e informação em geral. Eu confesso que fico na dúvida quanto a isso.  

O famigerado Candy Crush


Porque hoje existe menos tempo e espaço para se entediar. Do Candy Crush no celular ao algoritmo que joga 628 séries para maratonar na sua TV, até todos os amigos, amores, parentes, conhecidos, colegas no Whatsapp, resta pouco tempo vazio para sair e procurar alguma coisa para ocupar a mente. Poderia até mesmo expandir um pouco o tema e dizer que na verdade falta tempo com nós mesmos, com nossas coisas, nossas questões e dúvidas.

Talvez o tédio tenha sido meu ativo mais precioso. Porque o tédio abissal que só uma cidadezinha do interior é capaz de proporcionar me deu cultura inútil.

E da cultura inútil coletada em vida, da capacidade de armazenar, cruzar e transformar em outras ideias, saiu o meu sustento pelos 25 anos seguinte e uma carreira que eu nem poderia imaginar que viria pela frente.

O homem planeja. O Diabo ri.

Isso tudo me lembra algo que Taika Waititi disse certa vez. Taika é um dos diretores mais interessantes a surgir nos últimos tempos. Tem coisas ótimas e excêntricas na ficha corrida, como O Que Fazemos nas Sombras, The Hunt for Wilderpeople, Jojo Rabbit e ganhou o passaporte para o grande cinemão pipoca reinventando e dando um norte definitivo para Thor, a franquia que era o patinho feio da Marvel em Thor Ragnarok.

Taika Waititi e o elenco do filme Thor Ragnarok


Waititi coloca toda a sua trajetória nas costas de uma infância absolutamente tediosa nos cafundós da Nova Zelândia. Sem nada para fazer, tinha que inventar brincadeiras, fuçar em gibis e livros velhos, ocupar sua mente com algo naquele tempo que parecia não passar.

Isso gerou uma carreira.

Em cada pedalada para ir a sebos atrás de livros, discos e gibis, ou às empoeiradas videolocadoras de bairro, o tédio também nos dava um outro subproduto curioso: escolher o que levar levando em conta a equação dinheiro curto + muito tempo.

As saudosas video-locadoras


O quanto valia a pena experimentar algo novo ou ir apenas no que você já conhece?  Se você era jovem, e sim, eu era – bons tempos – frequentemente se atirava no novo e desconhecido. E quantas surpresas boas não vinham daí. Escolher era descobrir. Mas escolher também era se autoconhecer. Descobrir o que você gosta ou não. E no processo saber que tipo de pessoa você é. Eu descobri.

Uma pessoa que não vê com bons olhos deixar algoritmos escolher o que você quer ver ou fazer em seguida.

Afinal, o homem planeja. O algoritmo ri.

Com tantas produções do momento sendo jogadas constantemente em nossa cara, tantas sugestões de consumo metrificadas, tantas séries para maratonar, parece que conseguimos trazer o burnout – um nome bonito para vida insalubre – para nossas opções de lazer.

Tirinha de Raphael Salimena


Essa tira é genial ao explicar isso.

Demorei um tempinho para sair desse buraco do coelho de Alice, não antes de montar outra biblioteca com base na sugestão do algoritmo. Tem um saldo positivo nisso, descobri um certo tipo paz seguindo o que dizia a velha vinheta da MTV, “desligue a TV e vá ler um livro”.

Afinal, eles já estão aí mesmo. E é calmo, é sem feed, é silencioso, e é um diálogo lento, assentado, sem alguém lhe enfiando 500 sugestões na cara.

E ao fim de cada um deles, basta caminhar até as estantes e deixar aquela pequena voz interior – em nada parecida com uma Alexa – sussurrar “com base em seu histórico de leituras, sugerimos que pegue o que lhe der na telha”.

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